terça-feira, 6 de outubro de 2009

Charles, uma vida de bom humor

VALTER ABRUCEZ

A vida talvez nos reserve os melhores exemplos nos piores momentos. O gênero humano parece ter sido cunhado para fazer reflexões nos momentos de dor.

É na perda que se dá valor a tantas coisas boas que a existência oferece, mas que teimamos em não perceber.

Sofremos uma grande perda no final de semana. Completamente fora do script, do previsível, do que imaginávamos como previsível ou nas vizinhanças do nosso cotidiano.

Antonio Carlos Guarnieri, o sempre Toca, não está mais entre nós. Entretanto, prefiro definir sua ausência como uma mudança de cenário.

Ele saiu daqui, da nossa proximidade física, em que partilhava conosco humanitariamente sua rica personalidade, para ocupar outro cenário. Outro plano.

Nas portas do Cemitério Municipal, comentava eu com Luiz Netto como seria bom que a sociedade não vivesse estágio de tão grave degeneração para apropriar-se e dar curso aos exemplos que Toca deixou entre nós.

Infelizmente, como disse Luiz Netto, de que servirão as lições se, no momento seguinte, viramos a página da história e deixamos de beber em fonte de conhecimentos e virtudes oferecidas tão generosamente.

O Charles, como nos chamávamos desde que o conheci lá na primeira quadra da década de 70, transitou pelo pantanoso e traiçoeiro terreno da política sem dar causa a uma mágoa e sem ocupar seu coração com contrafeição alguma.

Às vicissitudes, respondia com bom humor, com o verdadeiro fair play na sua melhor definição.

A conversa era seu combustível. Ou seu oxigênio. Alongava-se agradavelmente. Fornecia sabedoria e espantava o mau humor.

Não vou fazer o contrário do que Toca fazia, que era levar tudo na boa, sem violência – um de seus bordões – mas foi alguém a quem muita gente aboletada no poder deveria ter ouvido muito mais.

No círculo da política, entretanto, os seres humanos são tratados conforme as circunstâncias. Tornam-se descartáveis.

Ora, alguém que exerceu quatro mandatos de vereador, candidatou-se a prefeito e vice e enriqueceu seu currículo com atos de coragem e independência quando boa parte das pessoas procurava o guarda chuvas dos poderosos, com certeza reuniu os dotes de um virtuosíssimo conselheiro.

No seu estilo, todavia, jamais se impôs como tal. Preferiu a vida ao seu estilo, sempre cercado de amigos.

Que me lembre – e foram frequentes nossas madrugadas em comum – nunca o vi isolado, sozinho.

Como nunca o vi sonegar um aperto de mão, um cumprimento, um abraço a todos que lhe rodeavam pelas proximidades.

Sinceramente, confesso que resisti a chorar ao contemplar seu semblante sereno horas antes da última viagem.

Não seria justo porque, com toda certeza, não seria adequado ao estilo de sua personalidade e à marca registrada de sua vida.

Acho que o sentimento da perda deveria ser expressado de outro modo: pela gratidão. Pela amizade, pelo respeito, pela consideração, pelo companheirismo, pela excepcional capacidade de jamais, em momento algum, dizer não.

Sei que não há ser humano unânime. Por essa vida, infelizmente, quase ninguém passa sem ser chamuscado. A maldade das labaredas sempre roça pela pele, mesmo dos mais generosos, mesmo com sentido profundo de injustiça.

Se exceção eu terei conhecido, em seis décadas e tanto de caminhos e descaminhos, esta terá sido Charles.

E, com todo respeito pelos sentimentos da família – aliás, de uma combinação exemplar com a personalidade de Antonio Carlos – não quero que ele descanse não.

Que se eternize em paz, sim. Mas, que continue, lá de onde estiver, a incansavelmente nos guiar pela trilha do bem e da alegria, que ele abriu e nos ofereceu como caminho para a vida.

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